Recanto:


"A única verdade é que vivo.
Sinceramente, eu vivo.
Quem sou?
Bem, isso já é demais...."

Clarice Lispector

"

Quando pratico o bem, sinto-me bem, quando pratico o mal, sinto-me mal. Eis a minha religião. Abraham Lincoln


" Há quem possua tesouros em ouro e prata.Os meus são de carne e ossos....Rafael e Guilherme...ambos com brilho e valores excepcionais. "Peta Andrade




sábado, 6 de agosto de 2011

O QUEIJO E OS RATOS

 Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes, pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade. Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade…

 Bem pertinho é modo de dizer. Na verdade o queijo estava imensamente longe, porque entre ele e os raios estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e…era uma vez um ratinho…

 Os ratos tinham muita raiva do gato. Quanto mais raiva sentiam, mais irmãos se tornavam. A raiva a um inimigo comum tornava-os cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse, ou sonhavam com um cachorro.

 Como nada pudessem fazer, reuniam-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegavam mesmo a escrever livros com a crítica “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos” diziam um. “Socializaremos o queijo”, dizia outro. Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções. Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bom que o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem, crescem sempre.

 E marchavam juntos, com os rabos entrelaçados, gritando: “Queijo já…”

 Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem certa manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era. O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, numa fome comum.

 E foi então que a transformação aconteceu. Bastou a primeira mordida. Compreenderam repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, ao invés de crescer, diminuem. Assim, quanto maior o número de ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram. Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos.

 A briga começou… Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas… E num ato contínuo começaram a brigar entre si. Alguns ameaçaram chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:

 “Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado de seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono.

 Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando…

 Os ratos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido. O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato, o olhar malvado e os dentes à mostra.

 Os ratos magros nem conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam então, que não havia diferença alguma, pois todo o rato que foca dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.

(Da “Estórias de bichos”. Rubem Alves. Ed. Loyola, p. 16-18).